Recensão crítica
Livro – PSICANÁLISE por J. Seabra Denis; Biblioteca Cosmos; Direcção de Professor Bento de Jesus Caraça (da Universidade Técnica de Lisboa); Nº. 76/77 – 1ª Secção – Numº. 39/40 – Ciências e Técnicas – Ciências Psicológicas e Sociológicas; imprimido aos 19 de Janeiro de 1945.
Álvaro Augusto dos Santos Carvalho*
Tornou-se, no meu entender, incontornável ao pesquisar sobre a obra, a referência a Biblioteca Cosmos, um dos marcos do Prof. Dr. Bento de Jesus Caraça fundada no ano de 1941, uma autêntica enciclopédia do Saber “Bento Caraça idealizou a colecção de livros com o intuito de que eles abarcassem o conjunto de conhecimentos então considerados importantes para a cultura de um indivíduo... O texto sobre psicanálise de Joaquim Seabra Dinis, tinha um papel questionar e exercer a seu modo um grande impacto sobre a juventude e sobre os trabalhadores Portugueses.” (artigo de Medeiros e Medeiros, 2003). Joaquim Seabra Dinis (1914-1996) é um vulto de primeiro plano enquanto médico psiquiatra, escritor, publicista, conferencista e enquanto autor de trabalhos de história da psicologia, da psicanálise, da psiquiatria, da neurologia bem como de trabalhos no âmbito da medicina psicossomática, (artigo do C.E.I. séc. XX). Médico formado pela Universidade de Coimbra, exerceu clínica no Hospital Miguel Bombarda, nos hospitais civis e no Hospital Júlio de Matos desde a sua inauguração em 1942. Marcou profundamente a psiquiatria portuguesa de meados do século XX. Lina Seabra Dinis filha do autor da obra disponibilizou, do espólio, uma carta de Bento Caraça a Joaquim Seabra Dinis, artigo em anexo, “Em Janeiro de 1945, o meu pai, Joaquim Seabra Dinis, médico psiquiatra, publicou na “Biblioteca Cosmos” um livro duplo (76/77) sobre psicanálise. Tendo enviado o original ao Professor Bento Caraça, este fez-lhe uma série de observações que, aliás, o meu pai achou muito pertinentes. ...” (artigo publicado em www.cgtp.pt). Na carta são dadas felicitações ao autor, “Tanto na parte expositiva como crítica tudo está feito com clareza e medida.”. E Bento Caraça apresenta, também, sugestões sobre três pontos.
PSICANÁLISE por J. Seabra Denis aborda o tema em si da psicanálise, expondo os princípios fundamentais, os vários postulados da psicanálise. De forma descritiva, explicativa e compreensiva a obra vai se revelando. Nos primeiros quatro capítulos encontra-se as bases onde assenta a psicanálise, no quinto capitulo aborda as aplicações clínicas da psicanálise e nos capítulos seguintes, do indivíduo para o social, e as suas aplicações na educação, na criminologia, na arte, na sociedade, a ética, na religião e na história, para depois proceder a uma análise crítica mais externa. Do geral para o particular. É uma obra que nos localiza e que nos dá a conhecer a sua essência e de forma hábil e ligeira, fazendo-nos viajar até ao divã mais famoso de mundo, onde nos apetece ficar e falar de nós, do eu que não conhecemos. A leitura desta obra aparece dividida em duas partes, «...um livro duplo...», no inicio uma Introdução, onde viajamos com Freud, onde aprendemos a conhecer a psicanálise, para depois nos surgir uma primeira parte particularmente expositiva, na qual são apresentados o corpo da doutrina e as suas principais aplicações de acordo com os escritos de Freud e dos seus discíplos que parece ser o ponto forte e a maior aposta do autor com Bibliografia que a sustenta; A segunda parte abrange algumas considerações críticas essenciais e as dissidências. No final podemos encontar uma bibliografia composta pelas obras de Sigmund Freud e de outros num total de oitenta e três publicações de referência que fundamentam a obra. Um indice de nomes próprios e vocabulário e indice alfabético. Num total de duzentos e dezoito páginas, chega-se ao final da leitura com vontade e compreensão por ser objectiva e de fácil consulta. Cada parte está subdivida em capitulos com sequências ritmadas e interligadas para elaboração do tema. A sua divisão e ligação teve esta intenção pois segundo o autor “...não estão expostos por ordem cronológica mas para poder proporcionar ao leitor a compreensão mais fácil e mais rápida do assunto.”. Na Introdução encontramo-nos com a doutrina freudiana em toda a sua extensão e implicações. Sonhamos ou fantasiamos nos seus encontros de Viena, Berlim, a Paris, no seu caminho até Breuer, conhecemos Anna O, percebemos o afastamento de Adler e Jung. E sentimos o seu caminho sozinho na análise psíquica dos seus doentes em estado de consciência desperta que o levaram a entender que a doença não era mais do que o resultado duma luta travada entre desejos ou impulsos eróticos e a censura da consciência, que não lhes permite realizarem-se e os recalca, levando-os a deslocarem-se, a transformarem-se em vários sintomas. No decorrer da leitura vamos de encontro ao tratamento psicanalitico que consiste em auscultar o inconsciente, trazer à consciência essses desejos recalcados e os métodos empregues por Freud; a técnica de associação livre, a análise dos sonhos e os actos falhados, e que “... A psicanálise vai mais longe e vai-se estendendo à interpretação da vida do homem normal” (cit. por J. Seabra Dinis; Psicanálise, 1945). O autor vai nos esclarecendo como a psicanálise pode ser utilizada como instrumento para a interpretação das forças do inconsciente. E, ainda, que “A Sexualidade representa a viga mestra de todo o edifício da psicanálise” (cit. por J. Seabra Dinis; Psicanálise, 1945), a importância do instinto sexual. É na primeira parte da obra que encontramos os detalhes explicativos de cada uma das técnicas pautadas pela eficiente ilustração com casos práticos. Pareceu-me importante debruçar-me com mais algum pormenor sobre os primeiros cinco capitulos. O primeiro capítulo inicia-se com os Actos Falhados, fenómenos da vida corrente que Freud considerou serem determinados por tendências profundas de recalcamento, lapsus linguae,. A descrição e explicação é concisa e precisa e apresenta-nos os vários grupos de actos falhados; o lapso, o esquecimento, a perda de um objecto. Depois passa a examinar cada um deles com mais detalhe recorrendo a casos práticos. “Em certos erros ou enganos o que se passa não é mais do que a realização directa de desejos recalcados” (cit. por J. Seabra Dinis; Psicanálise, 1945). E termina o capítulo com as conclusões de Freud. O segundo capitulo, os sonhos, para Freud e para a psicanálise tem um sentido. Do sonho da criança ao do adulto, do conteúdo manifesto ao conteúdo latente e do trabalho do sonho a, elaboração onírica, que consiste em processos de condensação, de deslocamento e de dramatização. Podendo, ainda surgir o contrário, inversão do sentido, da situação e dos acontecimentos. Não podia deixar o autor de abordar os símbolos “património da humanidade, herdado através dos tempos” e os casos práticos para melhor clarificar a interpretação «O sonho é sempre egocêntrico» e no final um resumo. O capítulo III, A sexualidade, inicia-se com uma ligação aos dois primeiros frisando que a maior parte dos sonhos e dos actos falhados está em relação com forças eróticas recalcadas no inconsciente. Freud separa o «genital», ligado à função reprodutiva, do «sexual». À força com que se manifesta o instinto sexual dá-se, em psicanálise, o nome de libido. Somos introduzidos ao desenvolvimento Psico-Sexual com explicação dos períodos e os complexos adquiridos e assimilados pela criança no seu desenvolvimento; os desvios, resultado das paragens ou fixações na transição das fases. Para Freud a génese das psico-neuroses está ligado a estes processos de fixação e de regressão da libido. É feito o desenvolvimento dos três princípios de funcionamento do aparelho psíquico: princípio do prazer, da constância e da realidade. E, ainda, a Sublimação, que para Freud é um mecanismo altamente benéfico para o indivíduo e para a sociedade, “O instinto sexual é, por vezes, susceptível de renunciar à sua satisfação total ou parcial adaptando-se a um objecto social, artístico, religioso ou não puramente sexual” (cit. por J. Seabra Dinis; Psicanálise, 1945). O Capitulo IV, dedicado A vida mental, a personalidade estrutura-se segundo um longo processo de intercâmbios entre o dentro e fora, os mecanismos de defesa são operações psíquicas inconscientes, empregadas pelo Ego para se livrar da angústia que é uma espécie de sinal de alarme da existência de um conflito interno. Os mecanismos são inconscientes por isso actuam de forma automática. “O psiquismo é considerado como um complexo sistema de forças inter-actuantes que se chocam e se contrariam, se somam ou se substituem, segundo determinados princípios” (cit. por J. Seabra Dinis; Psicanálise, 1945). No quinto Capitulo sobre a aplicação clínica da psicanálise, Seabra Dinis apresenta-nos um resumo de diversas vias de solução sobre o conflito. E examina, segundo Freud o que se passa nas neuroses de transfert, e salienta que para além da privação e da fixação, é necessário, um terceiro factor para a produção da neurose, factor esse que é determinado pela tendência ou conflito entre o eu e a líbido. E reforça que “a neurose só surgirá se o eu exercer um recalcamento sobre essa fixação”. É, também, neste capítulo apresentado a classificação de Freud, em três grupos, para as neuroses; de transfert ou psico-neuroses, as actuais e as narcísicas. Faz um relato das neuroses, descrição das suas manifestações e sintomas. Aborda também a terapêutica psicanalítica «Como auscultar o inconsciente? como descobrir os complexos?». Percebemos na leitura o “clima”, em que se deve realizar a psicanálise, ouvimos o silêncio do analista. Sente-se na sua vibrante escrita o ambiente cada vez mais profundo ao encontro daquilo que o próprio ignora. Seabra Dinis nos capítulos seguintes da primeira parte da obra, do VI até ao XI, elucida-nos sobre outras aplicações da psicanálise, na educação, na criminologia, na arte, na religião e na história os factos e processos sociais, as guerras, sempre com uma preocupação de ligar os conceitos as obras de Freud. A primeira parte da obra encerra-se assim e no dizer do autor “Não é necessário alongar-nos mais para que o leitor possa entrever, em toda a sua extensão, os vastos e tão díspares domínios onde a psicanálise se arrogou o direito de penetrar”. Na segunda parte Seabra Dinis, levanta as críticas à psicanálise, o que vai provocar a inversão do sentido e a tornar o fundamento das práticas clínicas apesar dos desertores e difamadores, que a própria psicanálise explica (Talking Cure, Pulsão e Complexos). A psicanálise constitui-se uma abordagem as condições psíquicas, dos processos mentais inconscientes, uma teoria da estrutura tripartite da mente, suas funções e tipos de personalidade. “A psicanálise não brotou espontaneamente da Natureza... não foi descoberta, mas inventada, e foi esta invenção que levou Freud ás descobertas sensacionais que os psicanalistas redescobrem todos os dias” (José Martinho em Freud & C.ª). Seabra Dinis na sua obra deu-nos sem dúvida as razões para acreditarmos no método, na psicanálise, nas razões que levam o homem a esta “Era do Vazio”, e explica-nos que é preciso mais de que observar, descrever, explicar e compreender os comportamentos do homem e da sociedade é preciso nesta dialéctica homem e sociedade, dar espaço ao seu sufoco angustiante, para que não padeça do seu “mal de vivre”. “O que Freud vai propor no lugar de uma psicologia oficial ou superficial é uma psicologia das profundezas” (José Martinho em Freud & C.ª). A psicanálise está aí. Freud, ele próprio um mestre da suspeita, teve a tarefa da libertação do homem e trouxe-nos a terceira ofensa da investigação científica, “3ª ofensa psicológica; onde o homem já não é mais senhor na sua própria casa” (Dimas de Almeida, 2002). Seabra Dinis, na sua obra Psicanálise, reforça esta doutrina com essencial “... verificou o leitor que uma das ideias básicas da doutrina Freudiana é a aceitação duma actividade psíquica inconsciente, ao lado dos fenómenos psíquicos que se passam na consciência.”.
A publicação desta obra vai ao encontro do “espírito” que Bento de Jesus Caraça queria levantar na cultura Portuguesa, trazer uma nova visão do mundo que se chocasse contra a paralisia imposta pelo tradicionalismo da sociedade portuguesa. A obra de Seabra Dinis tinha o papel de questionar e exercer uma “revolução” mental em Portugal.
http://revistas.ulusofona.pt/index.php/afreudite/article/view/1601
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