17 de Julho, 2012.
O rapaz que não era de Lisboa, deste tempo.
Hoje quase corri para um comboio, para o qual eu na
realidade pensava estar atrasado mas a real situação que me aconteceu foi que o
comboio não estava lá, atrasado, foi suprimido e assim eu até estava adiantado pelo horário que a
greve estabeleceu, pois tinha sido suprimido, coisa que nem o Luís de Matos consegue, suprimir algo que não lá está, penso eu, eu que quase corri como se nada mais
me pudesse parar e que me vi parado a espera de algo que não havia. Enfim
momentos da vida que se fazem contados na primeira pessoa de quem a vive ou viu
um comboio que não lá estava. Corri sem sair do mesmo sitio, corri parado e
esperei pelo que não estava atrasado ou seja o que estava a seguir. Há sempre
outro comboio a seguir, mesmo que não aja um antes, estranho não é? A verdade
desta frase alimenta-se de uma mentira. Dá ilusão do que se quer encontrar ou
do que se deseja sem pensar, só porque esperamos que assim seja e que respeite
as normas do expectável. Faz-me lembrar a história daquele rapaz de Lisboa,
moço da vida e de vida que adora cinema e falava de filmes como ninguém mais o
sabia fazer e também dos filmes que ele fazia só na sua cabeça, como se tudo
fosse a maior das realidades, onde não se distingue o real da fantasia, onde se
guardam sonhos como Constantino de Redol que guardava vacas. O rapaz também ele
era do Ribatejo e como quem não quer a coisa desceu o Tejo encantado com as
musas que cantaram e o encantaram coisa que Ulisses não deixou, tinha cera nos
ouvidos é que os marinheiros não se lavam muitas vezes. Voltamos ao rapaz que
viu um filme que lhe marcou a vida, que o fez conhecer a esperança que não era
uma moça de Lisboa, nem a que ficou no baú.
Era uma vez a história de um filme de suspense, contava o
rapaz, feito pelo mestre da suspeita que tinha uma janela indiscreta pela qual
a objectiva puxava pelo olhar num zoom onde até as lentes do rapaz aumentavam
para ver o corpo feminino que se apresentava de dentro dessa janela e com uma
suavidade de movimentos se despia com um som de fundo onde a música ia
empurrando o corpo do rapaz contra a cadeira, mas para quem assistia ao filme,
uma cena antes, já sabia que lá estava alguém escondido, há De Palma, apetecia
gritar, avisar, dizer perigo, ao rapaz apetecia-lhe salvá-la para tal como um herói,
ela lhe caísse nos braços onde exausta adormecia. Mas não podia, o rapaz nada
fazia a luxuria era, na sua cabeça muito maior do que a fantasia do herói e ele
no seu silêncio prazeroso, calava-se a espera que ela se despisse, mas no
exacto momento que ia acontecer; passava um comboio e nada deixava ver, era o
mestre no seu melhor, fechando a janela ao tempo, ao desejo, a ilusão,
colocando a pergunta no ar, no mistério do acontecimento, a surpresa de não se
saber. E o comboio passava, passava e passava e quando já tinha passado já lá
não se via ninguém e tudo podia ter acontecido ou nada, mas o momento já não
era o mesmo e talvez aquele corpo cheio da alma do rapaz, tivesse fugido ou
sido assassinada, o rapaz nunca chegou a saber o que tinha acontecido aquele
corpo de mulher, aquele rosto do qual ele não sabia o nome, apesar de ter
visto o filme muitas vezes ele ia sempre e todas as vezes com a ideia de que
talvez um dia, um dia talvez: «o comboio chegue atrasado» e ele pudesse
satisfazer o sonho de tantas noites que o atormentou, aquele corpo que ele não
podia ter, mas que desejava e sonhava. Não quis ser herói, não soube do final
da história porque a história só teria um final se ele fosse parte dela. Era
isto que o rapaz gostava no cinema, ser ele próprio a comandar a acção daquilo
que nunca acontecia e vivia sonhando mas com um brilho nos olhos dizendo: -
amanhã vou ao cinema ver aquela fita onde se vive muitas emoções, é de cortar a
respiração, já vi esta fita mais de 15 vezes, mais muito mais. Dizia ele
orgulhoso dos seus conhecimentos. Mas o real problema era contornar o real,
revirar o esperado, ser apanhado pelo que nunca poderia acontecer, mas que se
deseja que aconteça. A certeza do imprevisto por oposição a Hitchcock. Tinha
bastado um pequeno atraso para o rapaz se materializar do sonho.
Lisboa mudou no tempo e o rapaz parou para pensar no
tempo e as memórias mostraram-lhe uns velhos calções curtos e uns suspensórios
é nesta memória que existe a permanência do Ser. Hoje vi esse rapaz sentado no
chão da estação de comboios onde o tempo voa, ele não era deste tempo é do
tempo dos eléctricos e de andar descalço e estava a comer uma charlotte russe
de "Era uma Vez ..." em Lisboa. E tinha no olhar um brilho desse tempo de quem sabe
jogar ao berlinde.
A Charlotte Russe é uma sobremesa de origem francesa com história de uma princesa triste que na versão americana foi criada doses individuais e onde se coloca a cereja no top do bolo.
*Álvaro de Carvalho, 2012