sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Narciso não se dava com o dia a dia.

Narciso não tinha por hábito habitar na companhia do dia a dia. O seu ar de quem lhe deve tudo e de quem não quer saber de nada, leva-o a não querer muitas ralações, não se envolve para não se comprometer.
Percorrendo o dia como se o dia corrê-se por si só. Ele próprio fazia companhia ao dia por pena de um dia não ter o dia por companhia. Não se fazia esperar nem se aborrecia. Nem de entusiasmo ele vivia. Parecia-se com o tédio, só com um nariz mais bicudo, porque o tédio mete o nariz em tudo, mesmo onde não é chamado, porque não tem nada para fazer a não ser do que pensa ver. Há dias de tédio, queria na sua linguagem ele dizer que há dias onde não se pode fazer nada. Narciso era franzino e nada parecido com o da lenda que se transformou em flor. Pode-se até dizer que era algo cinzento, sinistro, sisudo. De estrutura baixa, mal encaixado dentro de si, caminhava de forma desengonçada e pesada. Mal cabia dentro de um casaco que era seu desde os tempos que já nem a memória se lembrava. 

Tinha sempre o passo acelerado e fazia-se ouvir porque tinha sempre uma tosse de quem fumava. Magro, baixo, de nariz grande, testa alta e sempre com gel no cabelo, assim se apresentava aos olhos de outros que o viam sempre misterioso como quem tem algo que não pode falar, um segredo por revelar e que não pode contar a ninguém, por ser tão profundo, mas tão sem fundo que se podia afogar nele ou cair num abismo sem fim. 
Ele acreditava pouco no que havia,  tinha nascido sem sina que para uns era sina de tristeza e de mal amado, por isso caminhava pela vida mais pela sombra do que pela via que nos leva a vida do dia a dia. Dizia, a quem o ouvia, mas mais para si próprio, que a vida é uma estrada sem fim e que nos leva a lugar nenhum e de onde não se pode sair. Por vezes ganhava assento lá na taberna da rua e jogava uma carta, fora do baralho, com ele próprio, fazia paciências. Nunca jogou à sueca ou ao sobe e desce, coisas dizia ele, de quem não tem nada para fazer. Nunca ninguém lhe ouviu um bom dia ou lhe retirou um sorriso. Era tão dono das suas coisas que as escondia no esquecimento. 
Morava, mesmo a curva, na rua da taberna numa casa já velhinha com cheiro a ele próprio, sempre sozinho, nem um animal de estimação o queria, pois não cuidava de nada nem de ninguém. Tinha um espelho na sala, cheio de pó onde num canto estava afixada uma foto com pouca nitidez de um homem que se sabia ser o seu pai, também de nome narciso mas tratado por senhor narciso, em moço, com um bigode farto e que vestia uma farda, num preto e branco sujo. A foto mantinha-se parada no tempo, onde lhe faltava uma metade. Rasgada, era a sua companhia a única presença na casa, vazia de saudade, com soalho de madeira e com janelas que ele nunca abria para não se ver o dia. A metade, a que faltava, a parte rasgada, dava lhe um pretexto para explicar porque nunca se casará ou lhe viram namorada. Sabe-se, diz-se pelos becos da terra nos lamentos das velhas que contam de sussurro num lamento de que lá falta, a metade rasgada, a sua mãe, que um dia fugiu para Lisboa na primeira carreira da manhã, dizem as más línguas que não foi sozinha. Assim, ele ainda tenro de idade ficou esperando todo um longo dia, no passeio da vida sentado, onde hoje há um paragem em frente a um lago. E espero, a volta da carreira que na volta veio sozinha. Nesse dia se não fosse uma vizinha nem jantar tinha. As pessoas sabiam, sabiam mas não comentavam nada, não havia nada a dizer, porque todos sentiam o desejo de terem sido eles um dia a partirem, a alguns faltou-lhes a coragem, a outros foi a moral e os que saiam só se fosse para emigrar. Por isso, quando ele caminhava a sua sombra pesava mais que o ar que respirava e lhe saia em tosse e catarro nervoso. O peso de tão macabro andar marcava o chão como um rasto de lama, onde um bom nome se perde por circunstâncias turvas e não contadas em toda a sua verdade, porque o pai, o senhor alfaiate também vivia lá pela taberna e a reputação levava-o a pagar uns bons copos aos que por lá pernoitavam. E depois contam algumas vizinhas, boatos de velhas sabidas, que o vinho o mudava e que o ciume o atormentava. E, ele filho desses humores e da que já não estava, passava o dia todo de tão só nas suas voltas que dava, e ia e vinha entre dois lados. 
O seu caminho era igual todos os dias, seguia em frente e sempre dava a volta pelo largo de onde um dia, em criança ele que nem uma lágrima deitara, no passeio da vida sentado, onde hoje não há só uma paragem mas também um lago pequeno com dois patos. Ele leva-lhes pão e sentasse na orla contemplando o fundo de um lago sujo de musgo e com água esverdeada. Fica por lá horas e várias vezes por dia. Este lago não lhe dá nada, nem mesmo o seu reflexo e assim ele gosta de estar, percebesse pelo seu ar, pensativo, distante, vazio. Os seus olhos não tem cor, nem lágrimas, nem saudade, nem perdão. Apenas o dia a dia de um lago onde nadam dois patos e não se vê o fundo lhe faz companhia. 
Andou por pouco tempo na escola e continuou a arte do pai, com bom nome na terra por ser alfaiate e tratado por senhor com mãos de tesoura e ele herdou esse jeito, era eficaz no que fazia para vestir os mais abastados da terra, mas nunca o chamaram de senhor, era o narciso porque as gentes da terra gostam de distinguir os seus. 
Narciso nunca saiu da sua terra, para ele o mundo tinha uma ida da qual não havia regresso, foi a vida que lhe disse, por isso ele não se afastava muito de casa para não se esquecer de voltar. 
O seu destino, o seu dia a dia, era de casa para o lago, passando pela taberna e do lago para casa. Sempre tendo por companhia a sua sombra que lhe pesava de tão sombria. Era tão negra que mesmo nos dias sem sol ela se fazia ver. Pode-se dizer que vivia na sombra de si mesmo. Não dava pena, nem era tristeza, o que as gentes da terra sentiam por ele, eram mais atraídas  pelo mistério da solidão que existe no silêncio da existência, calavam-se por respeito ou para ele não sentir vergonha da sua pálida existência. Acho que tinham até algum medo daquele vazio. Nem o padre se abeirava dele, talvez porque ele nunca tivesse ido a missa, nunca foi dado a sermões nem a estar entre as gentes. 

Um dia, a alguns anos atrás, viram-no no baile da terra pelos santos populares e não dançou, mas algumas velhas, mais batidas, dizem que ele lá foi pela Rosinha, que era fresca e leve e que a todos queria agradar. A Rosinha era filha do dono da taberna e as maças do rosto eram rosadas. Talvez fosse paixão, aquele aproximar talvez fosse a traição de uma memória que lhe fazia lembrar o perfume que sua mãe usava ou as maçãs do rosto, vermelhas que ela disfarçava logo pela manhã, com olheiras de quem não tinha dormido ou chorado pela noite inteira. O medo fazia-o calar-se e ele fingia que não tinha ouvido o pai a chegar tarde a casa e acordar o silencio da noite que tentava se esconder num sono fingido, numa sina de vida. Foi deixando na sombra as coisas que lhes fizessem lembrar no seu inconsciente a vida que ele não tinha pedido. Talvez ele tenha tentado lidar com o que o afastava da vida, talvez, talvez por isso a Rosinha, ela tinha cheiro a coragem e a uma manhã fresca sem culpas.

Mas, a Rosinha ele sabia que nunca iria ter, a Rosinha não era de ninguém era dela mesmo, por isso mais valia ficar na espera de um tempo que não era o seu, talvez a jogar paciências na taberna, talvez ela um dia se senta-se e lhe perguntasse como se tinha paciência. Dizem, dizem algumas velhas já batidas, mas quem sabe o que vai na alma de narciso se nem o próprio se mostra a si, apenas se conhece na sombra dos dias que vai passando entre o lago e sua casa. 
Um dia, já nem se sabe em que dia foi, a terra acordou com as gentes agitadas e sem muito alarido mas com ar surpreendido todos foram de boca em boca passando a noticia da sua morte. Narciso morreu. Deram com ele caído dentro do lago, afogado em si mesmo. É que o sr. Presidente tinha comprado dois cisnes, um branco e um preto, para embelezar e valorizar o largo principal da terra e mandou limpar o fundo do lago e mudar a água, para os cisnes poderem nadar. Nesse dia narciso, que não se apercebia das mudanças porque nada o surpreendia, nesse dia viu, viu um reflexo na água, viu uma imagem que ele não conhecia pois apenas conhecia de si a sua sombra e uma foto, rasgada em que lhe faltava uma metade, num canto de um espelho que não era ele mas era a sua história.

E de tão admirado ou assustado, não se sabe, a historia só fala do que quer ou do que dá jeito as gentes. Sabe-se é que o lago nesse dia transbordou pelo peso do seu corpo morto ou talvez, dizem as velhos já batidas, pelas lágrimas que chorou por se ter esquecido de viver o dia a dia e ter apenas por companhia a sua sombra.

Uma velha conto-me que a Rosinha chorou. Cheguei a pensar que não ter o que desejou o matou.

Álvaro Carvalho, Fev 2014

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